Saturday, August 26, 2006

o tempo de uma música

Fernando Pessoa escreveu através do seu heterónimo Alberto Caeiro:

Quando digo «é evidente», quero acaso dizer «só eu é que o vejo»?
Quando digo «é verdade», quero acaso dizer «é minha opinião»?
Quando digo «ali está», quero acaso dizer «não está ali»?
E se isto é assim na vida, porque será diferente na filosofia?
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro facto merece ao menos a precedência e o culto.
Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.

Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

Quando te conheci desejei mostrar-me toda. Entregar-me nua de máscaras, despojada de maquilhagem social. Queria oferecer-me tal e qual sou.
Desejei que soubesses do meu lado mais negro para só depois, caso não fugisses, pudesses conhecer a luz que também há em mim. Conheceres a minha interioridade era para mim uma urgência. Falei muito sobre onde estaria essa essência de mim. Sobre como se me reconhecerias sem um corpo.
À medida que me dava a conhecer, interrogava-me sobre a essência; ontologicamente sou a essência, mas onde está esse algo que me define o ser? Perguntei-te sobre o -eu- se situar mais no corpo físico ou no interior. Interroguei-me sobre a comunicação por internet poder tornar-me mais eu, mais essência.
No momento em que escrevo agora e quando respondo aos comentários, comunicando assim, até que ponto deixo de ser exterior e passo a ser mais -eu-?
Através da net, torno-me mais essência? Torno-me uma pessoa melhor? Deixo de precisar de um corpo?
Quando te conheci falei-te do facto de todos termos um corpo, mutilado ou não, deficiente ou perfeito, de todos os seres terem na sua exterioridade uma forma de expressar uma imagem interior e de captar e interpretar o mundo exterior.
Disse-te que as interpretações sobre o corpo variam, os rituais do corpo mudam, e o corpo continua, imune às minhas concepções filosóficas...
Perguntei-te se somos “exterior essencialmente” e desejei tornar-me-ei interior essencialmente.
Falei-te destas minhas inquietações quando nos conhecemos.
E esperei ansiosa pela tua resposta.
Durante alguns minutos ficaste muito calado. Do meio do calor do silêncio, olhaste para mim directamente nos olhos como se me quisesses ler o interior.

De repente, atiraste a cabeça para trás, riste-te com vontade e colocaste um CD a tocar.
Colocaste um dedo nos lábios e pronunciaste de modo acentuadamente sibilante um encantador sssshhhhhhhhhh e sussurraste" repara na letra da canção"; era Mão Morta Tu Disseste.
E eu ouvi, já contigo a abraçar-me a cintura, puxando-me contra o teu corpo, de modo possante, sem lugar para hesitações ou interrogações; sem concepções filosóficas eu ouvi - «procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca"
Eu disse "eu não faço nada. fico horas a olhar para uma mancha na parede"
Tu disseste "e nunca sentiste a mancha a alastrar"
Eu disse "não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada"
Tu disseste "e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada
"